Gélido

Não pode ser um inverno tão frio. Não me deixes congelar, tornar-me num glaciar e gelar te a ti como a mim.. deixar-te morrer em meus braços, sem qualquer lágrima derramar, sem qualquer ultimo folgo expirar. 
Talvez seja tempo de te deixar ir, deixar-te procurar uma estação em que possas correr livremente por campos verdejantes e aquecer os pés. Mas deixa-me a mim. Deixa-me sozinha, morrer, numa escuridão imensa que merece apenas a minha existência, não a tua, apenas a minha.

Não passo de uma concha, sem alma, sem folgo, sem calor, sem ser, sem humano. Não passo de um objecto inanimado derivando ao sabor de uma maré que não saberei onde me levará ou se levará. 


Lamurias

Debruçado sobre os leitos de uma cama, algo velha, talvez já passou por muito ou talvez viu muito. Como se fosse possível um ser inanimado comentar as eternas historias românticas ou até mesmo loucas, passadas por ele, nele e com ele. 

Fitas perfumadas, flutuando sobre a mesma velha cama que agora embrulha um olhar desfocado da realidade, que mergulha num mundo a parte do seu em busca do seu pertence a tanto desejado e nunca encontrado.

Insectos rastejando para fora de buracos escondidos por de trás de mobílias ressequidas pelo tempo comemorando a victoria de uma vida longa consumida por almas sofridas, aranhas e teias que brincam pelo ar e dançam com o pó, que flutuam e brilham.
Talvez chegou o momento de me juntar, de dançar pelo ar, de flutuar com o pó e não lutar mais, talvez chegou o momento de libertar o olhar fixado no mundo que tanto procuro e desisto cada vez que vejo o seu fim, o meu fim. Este fundo sem fim a que chamo vida, a esta vida sem fundo que chamo rotina, a esta alma solta que perdura amarrada por tão pouco e tanto ao mesmo tempo, será por uma doce amarra, será por uma amarga luxuria? 

Solta, voa, liberta-te, busca e morre. Morres para poderes viver.